Bom dia!
Primeiro, vou pedir desculpas pelo envio duplicado da newsletter na semana passada. Acho que os robozinhos que operam este espaço não se conformaram que não tinha edição da semana…
Hoje compartilho com vocês um tema que está martelando minha cabeça há um tempo, desde que li “Latim em pó” (falo dele), e mais algumas leituras recentes interessantes.
Espero que gostem! E até a próxima edição.
Repensar a patrulha da língua
Sou profissional do texto há 26 anos. A língua é parte do meu ofício diário, seja nos textos que escrevo, seja revisando e editando textos escritos por outros (inclusive pelo ChatGPT). Por isso para mim foi um espanto ter contato só em 2023 com o debate quentíssimo sobre variação linguística, as variedades linguísticas e o “Preconceito Linguístico” — com aspas e maiúsculas porque é o título do livro de Marcos Bagno publicado em 1999 e que se tornou referência no assunto.
Nós, jornalistas, somos frequentemente membros ativos do que Bagno chama de “comandos paragramaticais” — “todo esse arsenal de livros, manuais de redação de empresas jornalísticas, programas de rádio e de televisão, colunas de jornal e de revista, ‘consultórios gramaticais’ e por aí afora…” que patrulham fala e escrita de todos. Somos os primeiros a meter um “sic” num texto para ressaltar um “erro de português” ou desqualificar um interlocutor por seu uso “incorreto” da língua.
Pois é. Como fica absolutamente claro no livro, essa atitude é carregada de preconceito linguístico, que muitas vezes serve de disfarce para o preconceito social, de raça, de gênero.
O que com frequência se chama de “erro de português”, na verdade, não passa de uma violação da ortografia oficial, por sua vez uma norma instituída por decreto que tem pouca relação com a língua usada pelos seus falantes todos os dias. “Temos de fazer um grande esforço para não incorrer no erro milenar dos gramáticos tradicionalistas de estudar a língua como uma coisa morta, sem levar em consideração as pessoas vivas que a falam”, afirma.
Bagno rejeita a expressão “norma culta”, carregada de problemas, e prefere falar em norma padrão e variedade linguística de prestígio. E esse é outro ensinamento do livro: é preciso reconhecer a existência das inúmeras variedades linguísticas do país, ou dialetos — outro termo problemático, diriam os linguistas.
O livro de Bagno se tornou uma referência também porque resumiu em pouco mais de 200 páginas o que linguistas falavam há muitos anos, mas em linguagem pouco acessível ao leitor comum. Sua estrutura começa por demolir o que ele chama de “mitologia do preconceito linguístico”. Demolir não é exagero, pois Bagno é rigoroso na argumentação científica, e militante no seu combate.
Pela lista de “mitos” contra os quais o autor volta sua artilharia, é possível entender bem do que estamos falando:
- Mito n° 1: “O português do Brasil apresenta uma unidade surpreendente”
- Mito n° 2: “Brasileiro não sabe português/Só em Portugal se fala bem português”
- Mito n° 3: “Português é muito difícil”
- Mito n° 4: “As pessoas sem instrução falam tudo errado”
- Mito n° 5: “O lugar onde melhor se fala português no Brasil é o Maranhão”
- Mito n° 6: “O certo é falar assim porque se escreve assim”
- Mito n° 7: “É preciso saber gramática para falar e escrever bem”
- Mito n° 8: “O domínio da norma-padrão é um instrumento de ascensão social”
Se reconheceu? Não é preciso concordar com tudo o que Bagno fala para concluir que essa é uma discussão necessária e extremamente atual, ainda que o livro exista há 24 anos e esteja em sua 56a edição.
Conheci o livro de Bagno ao ler “Latim em Pó: Um passeio pela formação do nosso português”, de Caetano Galindo, lançado no final de 2022. Professor universitário e tradutor destacado, Galindo produziu uma obra curta e deliciosa sobre a história do idioma escrito e falado no Brasil.
Como uma grande reportagem, Galindo nos apresenta também aos principais conceitos da linguística moderna, bebendo muito da fonte de Marcos Bagno. “A história da implementação da língua portuguesa no nosso território é um drama. Nada tem da narrativa pacificada, meio oficial e meio preguiçosa, que nós mesmos costumamos adotar.”
Galindo toca no tema das variedades quando afirma que “as regras de uso de uma língua não podem ser mais determinantes do que o coletivo de seus usuários”. “Se uma maioria expressiva de falantes se comporta de forma contrária ao que a regra prevê, isso aponta para a necessidade, sim, de alterar a regra e fazer com que ela expresse mais adequadamente os usos da língua na sociedade.”
Sobre a questão que é tema central de Bagno, Galindo resume com elegância:
“A norma escolar (a tal norma “culta”) é uma variedade específica do nosso idioma. Ela existe e tem finalidades específicas, para as quais, é insubstituível. (…) E é ótimo dominar bem essa variedade. Ela abre muitas portas. Muitas. Mas ela não é intrinsecamente melhor que a nossa língua da rua, do sofá. Assim como um terno não é intrinsecamente melhor que uma bermuda e uma camiseta. O terno pode ser mais caro, pode ser mais sofisticado, mas nem sempre é a melhor escolha — nem em termos de adequação nem (muito menos) em termos de correção.”
Esse debate precisa começar pelo ensino da língua em sala de aula — Bagno defende enfaticamente que é perda de tempo ensinar gramática, análise sintática e nomenclaturas. Os professores deveriam concentrar suas energias no “letramento” dos alunos, ou seja, ler (muito) e escrever (muito).
“Esse ensino tradicional, em vez de incentivar o uso das habilidades linguísticas do indivíduo, deixando-o expressar-se livremente para somente depois corrigir sua fala ou sua escrita, age exatamente ao contrário: interrompe o fluxo natural da expressão e da comunicação com a atitude corretiva (e muitas vezes punitiva), cuja consequência inevitável é a criação de um sentimento de incapacidade, de incompetência.”
Não é difícil concluir também que esse método não só não ajuda os alunos a escreverem melhor como também é um poderoso desestimulante.
O caminho é longo. A boa notícia é que a norma oficial que rege o ensino da educação básica no país, a Base Nacional Curricular Comum, já contempla o estudo das variedades linguísticas e do preconceito linguístico em sala de aula, e os materiais didáticos aprovados pelo Ministério da Educação devem tocar no assunto obrigatoriamente.
É um tema muito mais amplo do que este espaço comporta. Para quem quiser se aprofundar, sugiro começar pelo “Latim em pó”, e ler a carta que Marcos Bagno escreveu à Veja em novembro de 2001, na qual resume boa parte dos conceitos que apresenta no livro.
Vale também ler suas “dez cisões para um ensino da língua não (ou menos) preconceituoso”.
Mulher, esposa, namorada, companheira?
Falando em norma padrão, está no dicionário: uma dos significados de mulher é “a esposa ou companheira de um homem”. Mas é claro que o termo carrega preconceitos ancestrais, especialmente quando dizemos “minha mulher”. Mas não há alternativa perfeita, como reflete Julian Fuks nesse ótimo texto.
“Talvez não possa nunca encontrar uma forma confortável de chamá-la, porque chamá-la pode ser prendê-la, pode ser um apelo para que ela aceite um estado de coisas e um lugar dado”, diz o escritor. E conclui: “talvez o melhor que possamos viver prescinda das palavras, seja apenas o apreço de uma companhia que se demora ao nosso lado, para a nossa sorte.”
Motivos (além dos óbvios) para o fim do cardápio em QR code
“Eu amo ter que escanear o quadradinho, ficar dando zoom em cada prato e cantar tudo pro meu amigo que ficou sem bateria”, disse ninguém, nunca, em lugar nenhum.
Assim começa o post em que o pessoal do “The Summer Hunter” reuniu ótimos argumentos para acabar com esse legado desagradável da pandemia.
Ver o cardápio no celular não é só desconfortável e pouco inclusivo. Ele “convida o celular para jantar”, reforça o “cada um na sua tela e ainda “corta a vibe” da ocasião que deveria ser de fazer uma pausa, desconectar e compartilhar o momento com amigos.
Quem assina embaixo?
Através de Ney, nos tornamos belos
O musical “Ney Matogrosso, Homem com H” foi um presente. Linda homenagem biográfica, é também um show de arrepiar, com Renan Mattos encarnando Ney nível Rami Malek fazendo Freddie Mercury.
O espetáculo inclui um trecho da crônica que Caio Fernando Abreu escreveu no Estadão em fevereiro de 1995 depois de ver o show “Estava escrito”, no qual Ney interpretava o repertório de Ângela Maria.
“Ney foi o anjo enviado por Deus para que o brasileiro compreenda melhor sua louca identidade de homem-mulher unidos num só: pássaro e tigre, cobra e borboleta, miséria e esplendor. Muito além do bustiê, Ney Matogrosso parece uma tese de mestrado ao vivo sobre a ambigüidade deste País. Tê-lo entre nós nos deixa mais nítidos e mais felizes também, pois a clareza dele é bela e como ele é nós, épico e arquetípico, nos tornamos belos através dele e muito mais livres muito mais nobres.”
Caio F. nos deixaria um ano depois.
- Aos 81, Ney está rodando o país com o show “Bloco na rua”. Para quem não conseguiu comprar ingressos para o show (esgotado em São Paulo), essa playlist tem o setlist. Viva Ney!