Bom dia!
Chegando em pleno feriado, mas estava transbordando de ideias para compartilhar com vocês.
Espero que gostem!
Boa leitura, e até a semana que vem.
— Juliano
A arte de colecionar o pensamento dos outros
Você lê ou ouve uma frase e pensa: “é isso!”. De repente, alguém encapsulou perfeitamente uma ideia, um pensamento. Como um presente, outro cérebro oferece uma forma ideal de expressar o que já pensávamos. E assim nasce uma citação. E assim nasce (ou pode nascer) uma coleção de citações.
É um hábito que todo leitor atento deveria praticar: anotar, num caderno físico ou digital, esses fragmentos preciosos. A protagonista de “Quarenta Dias”, da Maria Valéria Rezende, vive com os bolsos cheios de papeizinhos em que copia frases. Em geral, são guardanapos daqueles bem baratos, “perfeitos para meus furtos de palavras”.
Para nossa sorte, alguns autores se dedicaram a reunir suas coleções em livros. O filósofo Eduardo Gianetti publicou, em 2008, “O livro das citações — um breviário de ideias replicantes”. Composto exclusivamente do pensamento dos outros, a começar por um primeiro capítulo sobre “a inutilidade de prefácios”, o livro tem a marca do autor na seleção cuidadosa e na divisão temática.
No capítulo “A Mania de Citar”, encontramos a frase de Montaigne, de 1592:
“Não me inspiro nas citações; valho-me delas para corroborar o que digo e que não sei tão bem expressar, ou por insuficiência da língua ou por fraqueza do intelecto.”
É isso! Até Montaigne se valia do pensamento dos outros para expressar seus próprios. Mas cuidado: como diz Gianetti no título do capítulo, espalhar citações pode virar uma “mania”, um excesso.
Bem colocadas e costuradas, no entanto, citações elevam um texto. Sobretudo quando estamos diante de um farejador, que não se limita a citar do panteão de frases batidas, uma verdadeira praga da “memeficação” do pensamento na era digital. E pior: tantas dessas frases fazem sucesso justamente pelo seu tom de autoajuda, salvacionista. Para completar o estrago, há uma confusão completa da autoria — trabalho garantido para o Quote Investigator (falei dele aqui).
Mesmo que você não escreva regularmente, a coleção pessoal de frases é um antídoto ao mal que foi brilhantemente batizado de “doença CRAFT” — “Can’t remember a fucking thing”. Imagine se você tivesse guardado um punhado de frases daquele livro incrível que leu há 20, 30 anos?
Não sou tão disciplinado como o Gianetti, mas consegui guardar algumas frases neste arquivo, que está merecendo uma atualização. E você, colecionou uma ou várias frases bacanas? Manda pra mim, quem sabe me animo a mexer no arquivo.
Créditos: a inspiração para a coluna de hoje veio desse texto de Dwight Garner, crítico literário do New York Times, no qual ele comenta a publicação de sua própria coleção de frases, resultado de 40 anos de leitura atenta. Descobri o Dwight no blog do Austin Kleon, ele próprio um colecionador disciplinado.
- O livro do Gianetti está por apenas R$ 41,99 na Amazon, com 52% desconto.
Sobre massacres e imagens
A tragédia numa creche em Blumenau, apenas nove dias depois do ataque numa escola de São Paulo, levou a um movimento coordenado da imprensa profissional brasileira: um basta à veiculação de imagens dos crimes e dos nomes dos assassinos. Uma medida urgente e tardia, diante das evidências de que a súbita fama desses criminosos vinha inspirando outros.
A proliferação das câmeras de segurança gerou uma fonte inesgotável de “imagens fortes”, como os veículos cinicamente as descrevem antes de aproveitar a audiência fácil.
As novas regras valem para “ataques e massacres” como esses recentes. Mas a reflexão deveria ser mais ampla. No era do vale-tudo das redes sociais, essa é a hora em que o jornalismo pode mostrar valor com seu filtro de responsabilidade.
Trump não foi “indiciado”
Se traduzir os meandros do nosso sistema judiciário para o leitor é um desafio permanente, imagine em casos de outros países, com idioma e regras diferentes.
Nas última semana, fomos bombardeados por notícias sobre o processo judicial contra Trump. Boa parte do noticiário brasileiro informava que o ex-presidente americano fora “indiciado”.
Bem… Como mostra o dicionário do tradutor e juiz Marcílio Moreira de Castro, trata-se de um falso cognato da palavra “indicted” — “não traduza como indiciado”, ele recomenda explicitamente. Aliás, no nosso processo penal, o “indiciado” é apenas alguém contra quem, na conclusão de um inquérito policial, há “indícios” de ter cometido um crime — ainda que o indiciamento tantas vezes tenha sido utilizado para condenar antecipadamente no tribunal da mídia.
Voltando ao Trump, alguns veículos acertaram: a melhor tradução, ainda que imperfeita pelas diferenças do processo penal, é “Tribunal aceita abrir ação penal contra Trump”, ou talvez “Trump se torna réu em processo criminal”.
O dicionário do Marcílio é um recurso valioso para qualquer um que lida com termos jurídicos em inglês. Sua versão mais atualizada está disponível de graça aqui.
Quadrinho é literatura?
Nos primórdios da internet (e muito antes do Google Street View), a cantora Barbara Streisand tentou censurar na Justiça um site que exibia fotos do litoral da California em que era possível discernir sua mansão na beira da praia. Resultado: o site se tornou conhecidíssimo, e muito mais gente acabou vendo a tal foto. O efeito contrário passou a ser conhecido, especialmente entre comunicadores, de “efeito Streisand”.
Maurício de Sousa, ídolo de gerações, se candidatou a uma vaga na Academia Brasileira de Letras. Inconformado, outro candidato foi a público dizer que eleger um quadrinista “seria o fim da literatura escrita nos livros” e que ele próprio tinha muito mais “a acrescentar”. Sua grande contribuição, afinal, foi uma onda de defesa de Maurício e dos quadrinhos por seu papel fundamental na formação de leitores.
Como resumiu o sociólogo José de Souza Martins, colega de Maurício na Academia Paulista de Letras, “o centro de sua obra literária é fazer dos que estão chegando ao mundo sujeitos ativos da imaginação, ou seja da invenção e da criação de história e da vida”.
O debate sobre se quadrinhos são literatura é extenso, mas o ridículo ataque à obra de Maurício de Sousa ao menos nos lembrou que não há dúvida sobre a relação entre quadrinhos e acesso à literatura.
A ficção prega uma peça no jornalismo
Parecia uma história irresistível: ladrões entram numa livraria e levam, além do dinheiro do caixa e eletrônicos de valor, uma cópia de “Tudo pode ser roubado”, romance de Giovana Madalosso. “Parece ficção”, deve ter pensado o jornalista que escreveu a matéria, citando um post do dono da Livraria Jenipapo, em Belo Horizonte. E era.
Esse texto bem humorado do UOL conta a verdade do caso (vamos confiar).
O revés para a livraria virou uma alegoria não apenas do estado das coisas do jornalismo mas também do trânsito permanente entre ficção e realidade.
O que estou ouvindo
Toca Legião! Caminhos recentes me levaram de volta a essa banda tão fundamental na minha adolescência. Reuni nessa playlist os três discos que mais me marcaram, aqueles que ouvi de cabo a rabo (em vinil). Me deu vontade de conferir os filmes baseados em músicas do Renato Russo: “Faroeste Caboclo” e “Eduardo e Mônica”, esse último disponível no Globoplay.