Bom dia!
Esta semana estive ausente da edição diária, então o conteúdo abaixo é inédito para todos os assinantes.
Hoje finalmente falo do tema que dominou conversas nas últimas semanas: o podcast “A Mulher da Casa Abandonada“, da Folha. Minha abordagem, claro, é sobre sua importância como produto de mídia.
Espero que gostem.
Boa leitura, e até a semana que vem.
– Juliano
O que a “Casa Abandonada” significa para o cenário de mídia no Brasil
Faz tempo que os podcasts deixaram ser um produto de mídia de nicho, como comentei aqui no ano passado. Mas um novo patamar foi atingido com “A Mulher da Casa Abandonada”, o podcast investigativo que transbordou dos tocadores digitais para se tornar fenômeno cultural — de um dos temas mais falados do TikTok a tema diário de programas policiais de TV.
A entrada de um patrocinador no penúltimo episódio — o filme “O Telefone Preto”, da Universal — comprova que uma fronteira foi ultrapassada. O cheque de uma marca dessa relevância é a validação final de sua viabilidade comercial. Com um alcance sem precedentes, é certo que “A Mulher…” atraiu muitos novos ouvintes para esse formato, facilitando a vida de todos os demais produtores de podcast na busca por anunciantes — fica mais fácil o “pitch” para um diretor de marketing.
Chama a atenção que tudo isso tenha sido conquistado por um programa de “true crime”. No Brasil, o gênero já viu podcasts de alto nível como “O Caso Evandro” e “Praia dos Ossos”, que tiveram seu momento mas nunca sonharam com a notoriedade de “A Mulher da Casa Abandonada”. Nos Estados Unidos, o podcast “Serial”, de 2014, que investigava um crime por temporada, é tido como um dos responsáveis pela popularização dos podcasts por lá — o primeiro grande “hit” do formato, segundo o New York Times.
Mas “A Mulher…” não é apenas sobre “true crime”. É sobre desigualdade social, sobre o trauma da escravidão, sobre racismo estrutural. É sobre o Brasil. Como disse um leitor entendido com quem falei sobre o tema, “cada país tem o ‘Serial’ que merece”.
- Se ainda não ouviu, corre para maratonar os 7 episódios do podcast. Vale a pena. E o apresentador Chico Felitti já prometeu um episódio “bônus”, sobre tudo o que aconteceu depois que o podcast foi lançado.
Por trás das cortinas do jornalismo
A confiança na mídia não para de cair. No Brasil de 2022, 48% da população confia no noticiário (o mesmo que dizer que 52% não confiam), pior nível desde 2015, segundo dados mais recentes do Digital News Report, do Reuters Institute.
Se o fenômeno das redes sociais e os ataques de setores da política ajudaram a minar a credibilidade da imprensa, é certo também que os jornalistas durante muito tempo acharam que não tinham dever de transparência sobre como uma notícia é produzida, alimentando a desconfiança. Isso já começou a mudar, e hoje vemos muitos esforços para mostrar ao leitor/ouvinte/telespectador como a “salsicha” é feita.
Essa é uma das características marcantes de “A Mulher da Casa Abandonada”: o ouvinte embarca na investigação junto com o jornalista Chico Felitti. Ele não narra apenas os seus achados, mas como chegou a eles, incluindo suas frustrações e becos sem saída.
Com a explosão de popularidade do podcast, de repente Chico se vê também defendendo publicamente conceitos como o “outro lado” e o “interesse público” de uma história, que jornalistas sempre consideraram óbvios mas que o público ainda tem dificuldade de entender.
O resgate da confiança da mídia passa também por um esforço do jornalismo profissional de puxar as cortinas e chamar o público para dentro do processo, com abertura para debater seus erros e acertos.
O livreiro e os novos autores
James Daunt é um fenômeno entre livreiros. Começou como dono de uma única livrarias em Londres e viria a se tornar o CEO que tirou do buraco duas grandes redes de livrarias — a Waterstones, no Reino Unido, e a Barnes & Noble, nos Estados Unidos (já falei dele aqui).
Num evento durante a Bienal do Livro, Daunt falou sobre os segredos de uma boa livraria, e sua ênfase é absoluta no que se convencionou chamar de “livreiro” em português, embora o termo em inglês descreva o ofício bem melhor: “bookseller”, o vendedor de livros.
“Essa é nossa função, estamos na livraria para vender livros, para ganhar dinheiro”. Ele insiste na necessidade de investir nos livreiros, treiná-los e oferecer uma carreira. Dar todo o suporte para que façam bem seu trabalho.
E um dos aspectos fundamentais do livreiro está na descoberta de novos autores:
“Quando digo que vendemos livros, não quero dizer que ficamos na loja, alguém pede um livro e recebemos seu dinheiro. Quero dizer que recomendamos livros, defendemos autores que nós, os livreiros, gostamos, e convencemos as pessoas a comprar um livro, em quantidade. E isso é importante porque cria carreiras de autores; nós somos a forma como os novos autores são descobertos. Nós, por meio de recomendação, paixão e entusiasmo, devemos ter a expectativa de vender muito de um determinado título. Isso é divertido, e também importante para que novas vozes apareçam.”
E isso a Amazon não consegue fazer.

- Em Londres, visitei a Daunt Books de Marylebone, a primeira livraria criada por James. É belíssima, e segue cada princípio descrito por ele no evento da Bienal. E conheci também a unidade mais famosa da Waterstones, em Picadilly, que é um templo de adoração dos livros, com 6 ou 7 andares e dois cafés. Uma presente para os olhos e a mente (e uma tragédia para o bolso!). Vale a pena.
A tecnologia salva o esquecido
Aos 45 anos, posso passar muito tempo relatando “causos” de objetos esquecidos: chaves, celulares, carteiras, uma bicicleta, um presente, e muito mais, sempre recheados pela sequência tragicômica de eventos desencadeados por uma mente que vive nas nuvens. Muito tempo, dinheiro e energia foram gastos com isso.
Nos últimos meses, duas tecnologias entraram na minha vida para acabar com uma parte grande desse sofrimento: a fechadura eletrônica e os AirTags, da Apple.
A fechadura significa o fim da chave, e todo o martírio associado ao seu esquecimento. Basta lembrar uma senha. Não dá pra “esquecer” uma lembrança no Uber. Quer dizer, dá, mas resolvi esse risco salvando as senhas da minha fechadura num gerenciador de senhas (você pode usar os nativos do iOS ou do Android, ou ser nerd como eu e pagar uma assinatura do 1Password — escreverei sobre ele).

Já os AirTags significam, na prática, nunca mais perder um objeto (nem dentro de casa). Pendure um AirTag em qualquer coisa (eu tenho na chave do carro e nos meus AirPods, e penso em comprar um para carteira e passaporte), e você poderá, com seu iPhone:
- Saber se o objeto está com você;
- Ser avisado se o deixar para trás;
- Localizar o objeto em qualquer lugar, com precisão de metros, num sistema tipo “tá quente / tá frio”. O AirTag até emite um som para mostrar onde está.
Como dizem no mundo corporativo, é transformacional.
Poemas ao vento e no palco
E a prosa poética de Aline Bei virou teatro. É hoje a última oportunidade de assistir “O Peso do Pássaro Morto” no Espaço Parlapatões, na praça Roosevelt, centro de São Paulo.
Para quem leu o romance (resenha aqui), o espetáculo é uma homenagem a esse texto belíssimo. A experiência teatral não foi, para mim, a mais impactante, mas ainda assim vale cada centavo sair de casa para curtir a energia da praça numa sexta à noite. Ingressos aqui.
Um dos personagens é o cachorro Vento, com tudo o que a palavra tem de lirismo e metáfora. Me lembrou dois poemas lindos que passaram por mim recentemente. Para enquadrar:
Who Has Seen the Wind?
Who has seen the wind?
Neither I nor you:
But when the leaves hang trembling,
The wind is passing through.
Who has seen the wind?
Neither you nor I:
But when the trees bow down their heads,
The wind is passing by.
Llamó a mi corazón, un claro dia
Llamó a mi corazón, un claro dia,
con un perfume de jazmín, el viento,
– A cambio de este aroma,
todo el aroma de tus rosas quiero.
– No tengo rosas; flores
en mi jardin no hay ya; todas han muerto.
Me llevaré los llantos de las fuentes,
las hojas amarillas y los mustios pétalos.
Y el viento huyó.…. Mi corazón sangraba…
Alma, ¿qué has hecho de tu pobre huerto?
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