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Bom dia!
A tecnologia é o tecido por trás de profundas transformações no cinema, no esporte e nos carros, três dos temas de hoje.
Para quem está em SP: não deixem de visitar a exposição sobre Carolina Maria de Jesus, no Instituto Moreira Salles — falo dela abaixo. É o último final de semana. Mesmo cheia, vale a pena.
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Boa leitura, e até a semana que vem.
— Juliano
O Oscar da Apple e o futuro do Cinema
E finalmente um serviço de streaming levou o Oscar de melhor filme com “CODA”, o longa do Apple+ sobre uma família de surdos. A notícia marca uma virada na indústria do entretenimento. A linha que divide televisão, digital e cinema está cada vez mais borrada.
Se há 3 anos a indicação de Roma, do Netflix, esteve perto de gerar uma guerra na Academia, este ano os serviços de streaming estavam entre os favoritos para a categoria desde o início, com campanhas de marketing tão ou mais vistosas que as dos estúdios tradicionais.

A pandemia, sempre ela, acelerou o processo: com cinemas fechados, estúdios tradicionais correram para lançar suas plataformas de streaming, e a academia dispensou a exigência de exibição em salas para participar da premiação.
Para o executivo chefe do estúdio por trás de “Parasita”, vencedor de 2021, é uma mudança existencial:
“A realidade é que ver alguns desses filmes em casa em um portal – quando você está no controle total e pode desligá-los e ir embora, e pode alterar a maneira como o filme é editado em virtude de como você o vê – não é mais cinema.”
Tom Quinn, do estúdio independente Neon
Tem gente que se preocupa também com o poder de uma “big tech” como a Apple, que já controla tantos aspectos das nossas vidas, flexionando seus músculos em mais uma.
Farhad Manjoo, do New York times, lembra que não é novidade uma empresa de tecnologia investir em cinema: a Sony, cujo Walkman foi o “ipod” dos 80, começou nessa indústria naquela época e hoje a Sony Pictures já acumula 12 Oscars de melhor filme.
Outros alertam para o risco de confiar o destino do cinema a empresas que parecem, às vezes, estar apenas torrando uma parte de seus lucros polpudos numa operação de marketing. O que acontece quando um executivo mudar de ideia?
As salas de cinema não vão desparecer tão cedo. Como as reuniões ao vivo, o esporte em estádios e as viagens de turismo, farão parte de uma categoria premium de experiências presenciais, e o business terá que se ajustar. Enquanto isso, com a massificação da realidade virtual, ver filmes em casa se tornará cada vez mais uma experiência imersiva. Não vai demorar para você assistir um filme num cenário de cinema dentro do metaverso, “ao lado” de um amigo ou familiar do outro lado do planeta, sem levantar do sofá da sala.
Morta por carro autônomo: de quem é a culpa?
Está marcado para abril um julgamento vital para a história dos carros autônomos. Quem deve ser condenado pela morte de Elaine Herzberg, atropelada há quatro anos por um veículo autônomo da Uber?
Para os promotores do Arizona, onde ocorriam os testes da empresa, Rafaela Vasquez é a única culpada. Ela estava ao volante do veículo naquela noite, e olhava para baixo momentos antes do impacto, como mostra a câmera interna do carro. Já seus advogados tentarão provar que ela estava checando mensagens de trabalho no Slack, e que fazia isso porque a Uber havia removido dos veículos a segunda operadora.
“Me sinto traída”, disse Rafaela à Wired, em sua primeira entrevista após o acidente. Para além do caso legal e da incerteza sobre o futuro da tecnologia está o drama humano de uma mulher trans.
Após uma vida de altos e baixos, mudanças de emprego e até uma condenação por roubo, Rafaela achava que finalmente tinha encontrado alguma estabilidade como uma das dezenas de operadores de testes do projeto de carros autônomos do Uber. Até o Volvo que operava atingir a ciclista Elaine Herzberg numa rua escura da cidade de Tempe.
É um caso carregado de nuances:
- Os sistemas automáticos não deveriam ter previsto o acidente?
- Qual a responsabilidade dos desenvolvedores do software?
- Rafaela deveria estar olhando para o celular? (registros mostram que seu aparelho pessoal estava transmitindo o programa The Voice; ela alega que estava só ouvindo)
- Os gestores do projeto não deveriam ter previsto que, com o bom funcionamento da automação, em algum momento os operadores relaxariam a guarda?
- A Uber não deve ser responsabilizada pela decisão de deixar apenas um operador nos carros?
- Considerando que milhares de acidentes matam pessoas todos os dias nas ruas do planeta, a ocorrência de uma morte deve atrasar uma tecnologia que pode evitar erros humanos ao volante e salvar muitas vidas?
Nenhuma dessas perguntas tem respostas fáceis. Algumas serão respondidas pelo julgamento de Rafaela Vasquez.
- Vale a pena ler a longa matéria da Wired.
Onde ver o jogo?
Vocês sabem que não sou muito de futebol, mas não pude ignorar a nova realidade ultra fragmentada das transmissões de campeonatos.
Pesquisando o tema, achei esse excelente infográfico na Veja, um verdadeiro mapa para achar o seu jogo:
Novas regras, incluindo a que permite que o climbs mandante do jogo negocie a transmissão, abriram uma corrida das plataformas para garantir esse conteúdo que é um ativo valioso na atração da audiência.
Em tese, ter mais opções é sempre uma coisa boa para o consumidor. Mas, nesse caso, tem torcedor achando que é opção demais. O jornalista Álvaro Pereira Jr. resumiu bem:
A arrumação de Elomar e Chico Aafa
Cresci ouvindo “Cantoria”, a gravação em dois discos da turnê de 1984 de Elomar, Geraldo Azevedo, Vital Farias e Xangai. É um registro precioso de 4 gênios da música brasileira, que merece ser relembrado sempre.

Uma das faixas que sempre me fascinou foi “Arrumação”, de Elomar, na voz marcante de Francisco Aafa, piauiense radicado em Goiás. A letra é uma crônica rural no peculiar idioma do sertão, por vezes incompreensível para nós urbanóides (o disco original trazia um glossário, perda irreparável nas plataformas de streaming).
Aafa voltou à cena este ano no The Voice+. Chegou à semifinal, mas acabou eliminado neste domingo. Vale revisitar suas gravações (e os dois “Cantoria”).
Carolina, catadora, autora
15 de julho de 1955. Aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par de sapatos para ela. Mas o custo dos generos alimenticios nos impede a realização dos nossos desejos. Atualmente somos escravos do custo de vida. Eu achei um par de sapatos no lixo, lavei e remendei para ela calçar.
Assim começa “Quarto de despejo — Diário de uma favelada”, o livro que lançou Carolina Maria de Jesus ao mundo. Há 66 anos, ela descrevia o sofrimento diário na favela do Canindé, um realidade tristemente atual.

É um leitura incômoda, não só pelo estilo cru e sem polimento — e com a inusitada preservação dos erros do idioma —. mas principalmente pela descrição direta do cotidiano miserável. Carolina nos mostra a pobreza sem filtro, e de repente todos os nossos problemas se tornam minúsculos, ridículos.
A sensação de revolta com a desigualdade persistente encontra a esperança na salvação pela escrita. “Quando eu não tinha nada o que comer, em vez de xingar eu escrevia”, escreveria Carolina. Em meio à pobreza, ler e escrever não custam nada: “Hoje eu não lavo as roupas porque não tenho dinheiro para comprar sabão. Vou ler e escrever.”
Há mais de 6 décadas, Carolina também denunciava o racismo:
Eu escrevia peças e apresentava aos diretores de circos. Eles respondia-me:
— E pena você ser preta.
Esquecendo eles que eu adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rustico.
A história de Carolina Maria de Jesus e seu clássico “Quarto de despejo”, traduzido para 13 idiomas, é também uma história da relação do jornalismo com a pobreza e a literatura. Não fosse pelo repórter Audalio Dantas, os diários jamais viriam a público. Mas a revelação de Carolina também envolveu muito preconceito e incompreensão.

Diz o texto da exposição “Carolina Maria de Jesus: Um Brasil para os brasileiros”, no Instituto Moreira Salles, em São Paulo:
“A imprensa cumpriu papel ambivalente na trajetória de Carolina. (…) Ainda hoje, apesar do reconhecimento internacional e da importância de sua literatura para o pais e o mundo, o tratamento dado pela imprensa oscila entre o exotismo e a excepcionalidade, o classismo e a fascinação.
A exposição, que termina neste final de semana, amplia os horizontes do livro. Imperdível.
Dias de Saramago
Antes de ir: os 100 anos do nascimento de José Saramago serão uma festa de conteúdo (e lançamentos, claro). A Companhia das Letras preparou uma programação especial que começou com um ciclo de aulas. Vale a pena explorar o conteúdo no YouTube:
- Aula 1: o autor Julian Fuks fala sobre “Ensaio Sobre a Cegueira”. Ele escreveu prefácio da nova edição a ser lançada este ano. Achei incrível.
- Aula 2: Leyla Perrone-Moisés — Um sobrevôo da obra de Saramago
- Aula 3: Andrea Del Fuego fala sobre “O Evangelho segundo Jesus Cristo”. Ela assinará prefácio do relançamento (estou guardando para ouvir depois de ler).
- Aula 4: O pensamento humanista de José Saramago, com Pilar del Rio, viúva do escritor, e o jornalista Ricardo Viel, autor de um livro sobre a recepção do Prêmio Nobel em Portugal.
- Aula 5: Jeferson Tenório (de “O Avesso da Pele”) fala sobre Jangada de Pedra, que vai prefaciar.
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