Não canso de me espantar com os desafios que assombram os tradutores de obras literárias, encarregados da missão de entregar a mensagem do autor a um público que não apenas fala outro idioma, mas está em outro país, vive outra cultura, e muitas vezes outra época.
Como disse Irineu Franco Perpétuo, um dos principais tradutores de literatura russa do país:
“O ideal seria que todo mundo pudesse ler tudo no original, incluindo a Bíblia em aramaico, Homero em grego antigo, o Corão em árabe etc. Como isso não é possível, vocês precisam de um intermediário indesejável, no caso, o tradutor, que vá lá, decodifique aquele negócio e transforme num texto em português. Aquele atravessador que vai comprar o caqui do produtor rural e vender para você na feira. Vai chegar algum caqui estragado e isso faz parte do processo.”
Érico Assis, tradutor de quadrinhos para as maiores editoras do país, conta um episódio que ilustra bem os conflitos desse ofício.
Foi na tradução da versão em quadrinhos de Sapiens, recém-lançada pela Companhia das Letras. Num trecho sobre animismo — “a crença de que quase todo lugar, todo animal, toda planta… todo fenômeno natural, tem consciência e emoções, e que pode se comunicar diretamente com os humanos” —, os elementos naturais ganham vida cantando músicas conhecidas.

Os autores — o escritor Yuval Noah Harari, o desenhista Daniel Casanave e o roteirista David Vandermeulen — decidiram brincar com referências. Assim, o arbusto canta uma música da Kate Bush, os besouros (beetles) cantam uma música dos…. Beatles, e as pedras rolantes, bem, já sabem. (Tente descobrir os demais na página acima).
Como apresentar a brincadeira ao leitor brasileiro? Num texto divertido, Érico descreve os bastidores da tradução e as hipóteses que estudou até decidir “jogar a toalha” — a página era “intraduzível”, e as letras ficaram em inglês mesmo. Vale a pena ler inteiro, e descobrir as respostas para as charadas musicais.
Aprenda mais:
- Erico publica uma coluna mensal sobre tradução no blog da Companhia das Letras. Vale explorar os arquivos.
- Ele também é host do podcast Notas dos tradutores, que fala principalmente sobre tradução de quadrinhos, um tema tão específico quanto fascinante.
- A frase do Irineu está nesse ótimo vídeo que apresenta seu livro “Como ler os russos”, cuja resenha será tema de outro post.
- A versão em quadrinhos de Sapiens é uma boa dica de leitura compartilhada com as crianças.
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