Um debate antigo no mundo dos livros (e também dos filmes, empregos, investmentos, casamentos…): qual o momento certo de desistir?
O autor de romances policiais Mark Billingham entrou na polêmica essa semana: disse que se um livro (policial ou thriller) não o captura nas primeiras 20 páginas, ele o coloca de lado. “Eu fui um comediante stand-up. E não podia subir no palco e dizer: ‘Segurem aí que vou ficar engraçado em uns dez minutos’”.
“Tem que ter algo nos primeiros capítulos que me deixa interessado ou fisgado ou engajado ou, senão, qual é o sentido? (…) Há tantos grandes livros por aí. (…) Se uma história não está te pegando, então pelo amor de Deus atire o livro pela sala com raiva.”
O debate foi intenso. O jornalista Rupert Hawksley, do Independent, rebateu com veemência: “é um insulto ao autor se você não termina todo livro que começa”.

É claro que há exagero dos dois lados. Mas Rupert recruta em sua defesa ninguém menos que Umberto Eco. No precioso ensaio “Como escrevi ‘O Nome da Rosa’”, publicado no New York Times em 1984, o autor italiano fala sobre a dificuldade de transpor as 100 primeiras páginas de seu popularíssimo romance:
Depois de ler o manuscrito, meus amigos e editores sugeriram que eu abreviasse as primeiras cem páginas, que eles acharam muito difíceis e exigentes. Sem pensar duas vezes, recusei, porque, como insisti, se alguém quisesse entrar na abadia e viver lá por sete dias, tinha que aceitar o próprio ritmo da abadia. Se não, nunca conseguiria ler o livro inteiro. Portanto, essas primeiras cem páginas são como uma penitência ou uma iniciação, e se alguém não gosta delas, tanto pior para ele. Pode ficar ao pé da colina.
Eco prossegue:
Entrar num romance é como escalar montanhas — você tem que aprender o ritmo da respiração, adquirir o ritmo; caso contrário, você pára imediatamente. Alguns romances respiram como gazelas, outros como baleias ou elefantes. (…) O que significa imaginar um leitor capaz de superar o obstáculo penitencial das primeiras cem páginas? Significa, precisamente, escrever cem páginas com o objetivo de construir um leitor adequado para o que vem depois.
Se queremos viver cada instante da melhor forma, é claro que não faz sentido insistir em livros, filmes ou qualquer outra experiência que não nos interessa.
Nm mundo com tantas opções de conteúdo, vejo pelo menos dois antídotos para o que já foi chamado de FOBO, Fear Of A Better Option, aquela ansiedade crônica de que poderíamos estar lendo ou assistindo ou vivendo algo melhor:
1) uma curiosidade genuína que nos permita explorar além das 20 paginas;
2) a preferência por clássicos incontestáveis, que existem em número suficiente para uma vida inteira de leitura.
Quarenta anos e milhões de exemplares depois, por exemplo, fica bem mais fácil perseverar pelas 100 primeiras páginas de “O Nome da Rosa”.
- A dúvida entre insistir e desistir lembra o “dilema do Concorde”, sobre o qual falei aqui.
- Vi o filme mas nunca li o clássico de Umberto Eco. Estou cobiçando essa linda edição lançada pela Record em 2019, com tradução revisada, uma biografia do autor e um glossário com a tradução dos termos em latim.
Você precisa fazer login para comentar.