“Botar tudo para fora e esconjurar toda essa gente que tomou conta de mim; (…) expulsá-los do espaço que ocupam dentro de mim e recuperar minha própria presença”.
Essa é a missão de Alice, a protagonista no premiado romance de Maria Valéria Rezende. Seus instrumentos? Um caderno de folhas amareladas e uma caneta esferográfica barata.
A Barbie da capa do caderno é sua (nossa) companheira de travessia. Ainda que seja “só um recurso mentiroso” para Alice “se sentir em comunicação com alguém”. Sim, até diários secretos são formas de comunicação.
Alice diz ser feliz, mas logo conhecemos suas frustrações, o quanto cedeu aos outros na vida, deixando desejos e ambições para trás. Aposentada, vê-se fazendo mais uma concessão, ao trocar João Pessoa por Porto Alegre a pedido da filha.
Um lance final de egoísmo familiar é a gota que faz Alice transbordar e lançar-se em quarenta dias de transe pelas ruas da capital gaúcha. “Cidade nenhuma”, como descreve a autora em sua prosa igualmente lapidada e debochada.
A busca por um certo Cícero de Araújo, paraibano que “não deu mais notícia”, é apenas pretexto para sua quarentena desvairada. Uma caminhada aparentemente sem destino, mas que conduz Alice ao encontro que ela adiou a vida inteira: com seus próprios fantasmas.
Nas suas andanças, encontramos histórias tão familiares de preconceito com pessoas de “lá”, “um vago território homogêneo que cobria tudo o que fica acima do trópico de Capricórnio”. E conhecemos uma outra Porto Alegre, de gente invisível, pobre, destituída.
“Quarenta Dias” nos faz refletir sobre tudo o que aturamos em nome da vontade dos outros, e anima a embarcar numa “quarentena” — ironia destes tempos — em busca de uma espécie de purificação. É também uma reverência ao poder da escrita no caminho do autoconhecimento.