Quatro histórias de sobrevivência em lugares inóspitos, uma história sobre crime e corrupção em Boston, uma sobre a guerra do Iraque e outra sobre a guerra de independência americana. Esse é o resumo dos livros que completei em 2015, sem falar nos muitos que voltaram para a fila antes do final.
Minha predileção por relatos de fatos reais tem um fundamento prático: as poucas horas que posso dedicar à leitura, prefiro passá-las aprendendo algo sobre o mundo. Aprende-se muito na ficção, o leitor pensará. Mas essa é a minha pequena obsessão e ninguém tem nada com isso, certo?
As histórias de sobrevivência surgiram em uma noite de insônia há cerca de um ano. Por algum motivo que nunca saberemos, a loja Kindle me sugeriu “Island Of The Lost”, sobre um extraordinário naufrágio (e seus sobreviventes) nos mares gelados da Oceania (ALÔ EDITORES: por que ninguém traduziu Joan Druett ainda?). Me apaixonei pelo gênero e passei a devorar tudo o que que envolvesse muito frio e/ou muita neve e pessoas que, frente a frente com a morte, superaram limites para sobreviver. E contar-nos sua história, evidentemente.
A quem possa interessar, e para meu próprio registro, abaixo uma mini resenha de cada livro deste ano. Ao final, um lista incompleta dos livros incompletos que tomaram algum tempo do meu ano.
Endurance
Na esteira de “Island Of The Lost”, fui atrás da maior história de sobrevivência no mar de todos os tempos. Se não é, deveria ser. O jornalista americano Alfred Lansing narra de maneira brilhante a saga de Ernest Shackleton, que em 1914 perdeu seu navio em pleno Polo Sul, mas conseguiu liderar sua tripulação à sobrevivência sem nenhuma morte. O que faz deste livro único é o fato de que foi escrito em 1959, ou menos de 50 anos após a tragédia, de modo que Lansing ouviu boa parte das histórias diretamente de seus personagens centrais, sem deixar de consultar diários e documentos oficiais da viagem. Nos demais livros de naufrágios históricos que li, os autores assumem a difícil tarefa de reconstruir os fatos a partir de relatos de sobreviventes, e preenchem as lacunas com extensa pesquisa. Já “Endurance” traz os acontecimentos à vida com incrível detalhe. Além da narrativa cativante, Lansing nos descreve minuciosamente as personalidades de cada tripulante, em especial, claro, do capitão Shackleton, que deixa várias lições de liderança. Ainda que saibamos o final (spoiler: ninguém morre!), acompanhamos sem respirar a trágica sucessão de dificuldades enfrentadas pela tripulação do Endurance, esperando ansiosamente descobrir como será superado cada obstáculo. Esse parece ser, para mim, o ópio desse tipo de história: como esses indivíduos à beira de morte vão desatar mais esse nó?
Surpreendentemente, a história de Shackleton não foi parar nos cinemas até hoje. Virou uma minisérie estrelada por Kenneth Branagh, disponível apenas via download em sites piratas.
Enquanto Hollywood não acorda (free tip), leiam este livro!
PS: obsessivamente pesquisando histórias de naufrágios, descubro que Caroline Alexander, autora de mais um livro da minha wishlist sobre o tema, reescreveu a saga do Endurance recentemente, num livro belíssimo, cheio de fotos, e que virou filme iMax narrado por Kevin Spacey. Minha lista de desejos aumenta sem parar…
True North
Buscando novas emoções na neve, me voltei para o lado oposto da terra. Pesquisei e li amostras de vários livros (incluindo “In The Heart Of The Sea”, que agora virou filme e, por isso virou meu livro para entrar em 2016). Há muitas histórias incríveis, a escolha foi difícil.
Esse livro se propõe a esclarecer uma das grandes disputas da história da exploração americana: quem chegou primeiro ao Polo Norte no início do século 20: Peary ou Cook? Numa época em que não havia GPS ou smartphone, essa não é uma pergunta fácil de responder.
Bruce Henderson (autor de uma lista impressionante de livros-reportagem, incluindo um #1 do NYT, todos na minha fila) reconta detalhadamente as muitas tentativas que Peary e Cook empreenderam em conjunto para atingir o Pólo Norte. A dupla eventualmente brigaria e, anos mais tarde, voltariam de expedições separadas ao Ártico reivindicando o feito.
Ao mesmo tempo em que aprendemos como esses corajosos exploradores se viravam sem recursos tecnológicos de hoje no gelado extremo norte da Terra, viajamos com Henderson para o centro de uma batalha de relações públicas entre Peary e Cook no esforço de convencer o mundo sobre a verdadeira paternidade da descoberta do Pólo Norte. (Nota mental: reler o livro e transformá-lo em case de PR).
“True North” é um livro tremendamente interessante. À sombra de “Endurance”, não é fascinante. Ainda assim, me ensinou sobre um tema que eu ignorava completamente — a descoberta do Polo Norte — e ampliou meus conhecimentos sobre explorações em lugares gelados.
American Sniper
Meu método preferido de selecionar livros é identificar aqueles que deram origem a filmes em cartaz nos cinemas. Às vésperas da estreia de “Sniper Americano” no Brasil, mergulhei na história autobiográfica de Chris Kyle.
O livro é um relato nu e bruto da guerra no Iraque. Não estão em jogo aqui ideais ou concepções de mundo. Kyle é um militar com uma missão, e ele vai cumpri-la com esmero. Sua visão desprendida do contexto da guerra chega a ser perturbadora. Parece, muitas vezes, que estamos diante de um experiente jogador de videogame, enfrentando uma batalha virtual com rigorosa disciplina. Não parece interessado nas histórias dos homens e mulheres do outro lado da linha de combate. Mas as detalhadas descrições do combate são entremeadas com outro tipo de conflito — suas frustradas tentativas de voltar à rotina em casa após um período na guerra, e o incontrolável desejo de voltar à linha de frente, mesmo deixando para trás mulher e filhos.
Não espere “American Sniper”, portanto, debates de ideias ou pesquisa histórica. O que ele entrega brilhantemente é uma experiência assustadoramente realista de dentro da guerra, na visão de um combatente americano.
O filme, indicado para seis Oscar, eu ainda não vi.
The Elephant Voyage
Senti falta da água salgada gelada e busquei a terra firme de Joan Druett, que havia me introduzido ao fascinante universo da literatura marítima (naval?). Desta vez, ela se debruça sobre a viagem do Sarah W. Hunt, escuna americana que, em 1883, ruma aos mares da Oceania em busca de focas, das quais se extraía os lucrativos óleo e pele.
Curioso observar que em todas as grandes histórias de sobrevivência, seus personagens parecem ignorar os muitos sinais de que algo vai dar incrivelmente errado. Assim acontece em “The Elephant Voyage”. Em barcos sem nenhuma provisão, a tripulação ancorada na ilha Campbell deixa o navio em dois barcos com o objetivo caçar focas, prática já ilegal nessa região nesse período. Após serem atingidos por condições meteorológicas terríveis, um dos barcos nunca retorna, e os homens do segundo sobrevivem a duras penas, mas não encontram seu navio na volta. O capitão, impaciente, zarpou para a Nova Zelândia após concluir que sua tripulação não conseguiria mais voltar. Após um resgate espetacular, segue-se enorme batalha judicial em solo neozelandês entre a tripulação abandonada e seu capitão, com todas as complexidades legais e diplomáticas de um processo em tribunais da então colônia britânica Nova Zelândia, sobre fatos ocorridos em terras neozelandesas, porém com personagens americanos, viajando sob bandeira americana.
Para quem, como eu, buscava mais histórias emocionantes como as de “Island Of The Lost”, o livro não satisfaz completamente. Da metade até o fim, Joan Druett narra em detalhes os caminhos da disputa na Justiça. Embora interessante e tremendamente bem pesquisada, não era exatamente a história que eu estava procurando. Há muitas outros relatos incríveis de naufrágios esperando na fila.
1776
A dica sobre David McCullough veio do meu pai, um assumido fanático por história britânica e americana. Arrisco dizer que David fez pelos americanos algo parecido com o que o jornalista Laurentino Gomes se propôs a fazer no Brasil: escrever de forma interessante e atrativa sobre a história do país.
“1776” é um emocionante relato dos acontecimentos desse ano crucial para a Revolução Americana. O ano em que entraria para a história como aquele em que os rebeldes declararam sua independência, a ser obtida de fato alguns anos depois, ao final da guerra com os britânicos.
Até ler este livro, meu conhecimento sobre a Revolução Americana não passava de uma lembrança dos tempos de colégio. Na narrativa muito bem escrita de McCullough, conhecemos melhor alguns personagens cruciais dessa história, em especial o grande líder George Washington, uma figura notável. À frente de um exército em farrapos e diante da poderosíssima armada britânica, enfrentando condições meteorológicas castigantes, Washington consegue vitórias inimagináveis.
Para quem deseja se aprofundar na história de como os americanos conquistaram sua independência, e em última análise estabeleceram as bases do que conquistariam nos séculos seguintes, o livro de McCullough é um excepcional aperitivo. Infelizmente para nós leitores instantaneamente apaixonados por sua escrita fluida e agradável, a obra se limita aos fatos do ano que lhe empresta o título. Terminei com a missão de buscar outros volumes para completar meu conhecimento sobre a memorável saga americana. E com outro livro de McCullough adicionado à wishlist: “John Adams”, biografia do advogado de Boston que teve papel fundamental na revolução.
Touching the Void
Voltando à neve, encontro histórias de acidentes de alpinismo, um gênero por si só. Há muitos anos, li e adorei o incrível “No ar rarefeito” (esse virou filme), sobre como a mercantilização da escalada do Everest provocou uma tragédia em que cinco turistas morreram. A pesquisa na Amazon revelou esta jóia de livro, escrito pelo próprio Joe Simpson, alpinista britânico que quebrou a perna escalando uma rota desconhecida nos Andes peruanos. Seu colega de aventura, Simon Yates, supera todos os limites para carregar o amigo ferido, até que se vê obrigado a tomar a decisão mais dura de sua vida. Acreditando que Joe estivesse morto, retorna ao acampamento sozinho. Enquanto isso, Joe passa por eventos inimagináveis, arrastando-se (literalmente) para a salvação. Seu relato de como atravessou quilômetros na neve, praticamente sem comida ou água e com o joelho destruído é emocionante, uma aventura que deixa o leitor sem fôlego. Joe nos inspira não só com sua lição de resiliência, mas com a compreensão sobre drama psicológico do alpinista que acredita ter abandonado o amigo sem chance de sobreviver, apenas para ser surpreendido por sua chegada dias depois.
“Touching the void” virou um documentário em 2003, mais um para a lista de desejos.
Black Mass
Quando vi a combinação de Johnny Depp e filme de gangster, a reação foi quase instintiva. “Donnie Brasco”, longa de 1997 em que Depp vive a história verdadeira de um agente do FBI infiltrado na mafia novaiorquina, é de longe meu filme preferido sobre o tema. E o livro do agente Joe Pistone que deu origem ao filme é leitura indispensável para fãs do gênero. Por isso, logo que li sobre “Aliança do Crime”, busquei o livro. E fui recompensado.
“Black Mass” é, antes de mais nada, um trabalho jornalístico primoroso. Em 1988, os repórteres Dick Lehr e Gerard O’Neill, do Boston Globe, investigaram a história dos irmãos Bulger — Billy, um dos políticos mais poderosos de Massachussets, e James “Whitey”, notoriamente envolvido em todo tipo de atividade criminosa, mas que sempre conseguia escapar ileso de investigações policiais. A apuração de Lehr e O’Neill confirmou o que parecia impossível: Whitey era, na verdade, ilegalmente protegido por agentes do FBI, sob a alegação de que a “aliança” valia a pena em nome do combate à máfia italiana em Boston. À época, a reportagem do Boston Globe foi desmentida com veemência pelo FBI e por outras autoridades de segurança pública.
Ao longo dos anos que se seguiram à publicação da reportagem, a verdade finalmente veio à tona, em uma série de julgamentos e investigações. Em 2000, Lehr e O’Neill publicam o livro relatando os detalhes assustadores da história que eles haviam revelado 12 anos antes. Durante mais de uma década, sob a proteção de agentes corruptos do FBI, Whitey Bulger liderou uma organização criminosa envolvida em jogos ilegais, tráfico de drogas e assassinatos.
Para amantes de livros sobre crimes, “Black Mass” é diversão garantida. Também oferece muitos insights sobre o ofício da investigação jornalística, e ainda vai fundo no tema da colaboração de criminosos com a Justiça. Como diz a citação de John Le Carré que abre a terceira e última parte do livro:
Some things are necessary evils,
some things are more evil than necessary.
A incompleta lista dos incompletos
Abaixo algumas amostras e livros já comprados aos quais dediquei horas de leitura em 2015, me desviando para algum outro antes de chegar ao final. Distrações do Kindle… Quem sabe em 2016 tenham melhor sorte.
The Outfit: investigação profunda sobre a gangue que dominou o crime em Chicago por 60 anos.
Gideons Trumpet: a história verdadeira de um homem em busca do direito a de defesa, contada pelo maior repórter jurídico dos Estados Unidos.
All The Light We Cannot See: vencedor do prêmio Pullitzer na categoria Ficção (sim, eu fiz uma exceção), bela história situada em plena Segunda Guerra Mundial, outro tema favorito meu.
Black Hawk Down: fui levado a este título quando procurava livros sobre Pablo Escobar, influenciado por Narcos. Mark Bowden é autor de um aclamado livros sobre o criminoso colombiano, mas esta é sua obra mais famosa, que virou filme de Ridley Scott.